quinta-feira, 23 de setembro de 2010

As Pequenas Epifanias de Caio Fernando Abreu









Eu estava no primeiro ano da faculdade quando descobri Caio. Minha professora de Panorama Literário da Literatura de Língua Portuguesa me diria: Caio seu vizinho? - ela sempre dizia que devemos reverência os autores, devemos respeito a eles. Eu concordo com ela, em parte. A minha reverência está no cuidado que dou às palavras deles; está no cuidado com que guardo cada parte de sua obra em mim. Digo Caio, pois hoje me sinto tão próxima a ele. Talvez de todas as pessoas intensas e profundas que admiro, Caio é o que mais se aproxima da minha alma. Me delicio em cada palavra dele como se pudesse me reconhecer em cada linha. Sinto um profundo amor por tudo que ele produziu e continua produzindo em mim. Esses dias o meu Livro de cabeceira é um livro de crônicas dele. Pequenas Epifanias reúne crônicas que Caio escreveu entre 1986 e 1995. Crônicas belíssimas, cheias de sentimentos profundos. Não posso falar muito desse livro ainda, pois estou apenas no começo e confesso que a minha vontade é economizar o máximo possível (gosto de economizar as coisas dele). Lendo aos poucos, para não perdê-lo logo... Mas claro que dentre as poucas que li já elegi a minha preferida e trago aqui só pra falar no meu espaço sobre o meu grande apreço por Caio, aquele que podia perfeitamente ser o meu vizinho solitário, mas que por algum motivo prefere viver aqui, dentro de mim.   
Por Jordânia Azevedo 



  EXTREMOS DA PAIXÃO

"Não, meu bem, não adianta bancar o distante
lá vem o amor nos dilacerar de novo..."
Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro (a) mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo (a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo (a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.
Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.
No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira:compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe,berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o terno do perecível, loucos.
Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolos em face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.
Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.
Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.
O Estado de S. Paulo, 8/7/1986

ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. Porto Alegre: Sulina, 1996. 

3 comentários:

  1. Jordânia menina. Você engravidou e eu nem soube. Você carrega dentro de si um Caio Abreu e muitos poemas. Você sustenta a sua existência na beleza mundana, sem medo de encarar a profundidade que há nas coisas e nas relações, tecendo uma personalidade singularíssima, cheia de existências pulsando em sua existência. Sai de dentro de si belas reflexões, tomadas de empréstimo e elaboradas de si mesma. Você é bela e meus olhos a vêem assim, lendo-a com palavras alheias, descobrindo-a num patamar elevado de reflexão.

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  2. sou a pessoa que te liga e nada diz, sou assim apaixonado(a)por vc.

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  3. sou a pessoa que te liga e nada diz, sou assim apaixonado(a)por vc.

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